Excelente texto diferenciando tragédia e comédia, porém, com o português de Portugal antes do Acordo Ortográfico (provavelmente) havendo, portanto, algumas palavras escritas diferentes. Optei por deixá-las como estavam no texto original. Boa Leitura.
Obs. Esse texto está de acordo com a matéria do 6º ano.
A existência dos dois géneros (Tragédia e
Comédia) tem sido justificada, no plano da construção, pela ideia ou
pelo fim, no plano da realização, pela forma ou
pelo processo; assenta-se normalmente em que o plano de
construção da Tragédia diverge do da Comédia no desenvolvimento Interior da
ideia e na diversidade do fim, e, consequentemente, em que
o plano de realização da Tragédia diverge do da Comédia no
desenvolvimento exterior da ideia (forma) e no processo histriónico escolhido
(processo particular aplicado). Mas, como TEATRO é designação usada para uma
expressão artística que, através de vários processos construtivos, se
manifesta por vários sucessos de realização, a construção de uma peça, em
Teatro, é apenas um momento da realização, e, portanto, para se atingir um conceito de
género dentro de tal medida, interessa apenas a realização conjunta, total e
final, tomada a partir dos efeitos determinados (os efeitos determinantes
interessam só à apreciação).Ora, Comédia e Tragédia são géneros que só
abusivamente cabem dentro dos quadros da análise literária, porque não são
totais pela ideia e pela palavra; enquanto Poesia e Romance se acabam
precisamente em ideia e palavra, estas, na Tragédia e na Comédia, são
elementos carecendo de vida pela forma, uma forma que os conduz e que nunca
deve ser conduzida por eles. Comédia e Tragédia são géneros que, portanto,
não cabem dentro de conceitos antagónicos, porque, como elementos contributivos, contribuiriam então
para a dispersão, e, porventura, para o aniquilamento da arte que servem. Uma
arte é uma unidade, e, com mais ou menos parcelas, mais ou menos irisada, não
deixa de ser uma unidade válida; ora, a unidade pode atingir-se por caminhos
diferentes ou por somas de parcelas diferentes, mas nunca por caminhos ou
somas de parcelas divergentes – e por isso nos encontramos no momento de
análise conceptual que exclui a divergência:— Tragédia é a realizaçãoem-Teatro dada através
de uma sublimação de atitudes interiores e de uma consumação da acção.— Comédia é a realização-em-Teatro dada através
de uma reprodução de atitudes exteriores e de uma interrupção da acção.(Os termos sublimação de atitudes e
reprodução de atitudes dizem respeito ao primeiro momento da
realização - construção; os termos interior e exterior dizem
respeito ao segundo momento - momento final dá realização). Assim, onde o
primeiro momento é feito de uma sublimação de atitudes, o segundo momento
acaba-se no plano interior da expressão espiritual e simbólica; onde o
primeiro momento é feito de reprodução de atitudes, o segundo momento
acaba-se no plano exterior da expressão pelo gesto (expressão material). A
acção é toda interior ou toda exterior e, como a acção interior não se
compadece com interrupções, a consumação dá-se em vida de cena,
e, como a acção exterior é toda imediata, acontece haver sempre um momento
susceptível de interrupção. Pode dizer-se que também a Comédia se tece com
elementos interiores, espiritualmente válidos, mas fá-lo aplicando-lhes um
domínio formal determinante, isto é, tece-os pela aparência significativa,
momento exterior de uma essência discutível. A Comédia não procura
eternizar-em-si o cerne do conflito, mas reproduzi-lo em alheamento – o
conflito é que, em circunstâncias idênticas, pode repetir-se e eternizar o
quadrado artístico que o reproduziu. A Tragédia, debruçando-se até ao fundo,
alarga o conflito por dentro e expõe-lhe a pele mais íntima em símbolo a
pedir atenção eterna. Claro que para um conflito contribuem momentos
ajustados, e, por exemplo, um domingo de campos verdes, com sinos, outras
gravatas e muito sol, ou um meio-dia de semana com operários partidos pela
cinta, céu enfarruscado, cestas escuras de almoço e outra gente apressada são
cenas de Teatro oupara Teatro, mas cenas parciais, agora carecendo
de ideia e palavra, à espera, portanto, de reprodução para os sentidos imediatos ou
de sublimação pelo espírito. Reproduzindo, a Comédia deduz;
sublimando, a Tragédia induz.De posse dos conceitos, interessa agora averiguar
quais os processos necessários para uma realização total; e interessa também
saber até que ponto os dois géneros são susceptíveis de enxerto ou
combinações (uma vez que está excluído o conceito de antagonismo).— Os processos a adoptar são todos-interioridade
ou todos-exteriorização. Na realização final da Tragédia, a ideia (acção
interior) comunica-se ao processo e é transposta para os vários elementos de
cena: cenário, luz, guarda-roupa, caracterização; na realização final da
Comédia, estes mesmos elementos todos-exteriores vivem e contribuem para o
sucesso final da reprodução. Não há divergência de processos, mas, diferença
de aplicação dos processos. Para o demonstrar, escolhamos, ao acaso,
elementos de peças clássicas e modernas:Em «A longa Ceia de Natal», tragédia de costumes
de Thornton Wilder, exige-se, em desenvolvimento de acção, a concretização
cénica duma ideia toda-interior – a morte; essa concretização é
realizada em cenário por uma porta de fundo simbólica; na mesma peça, oenvelhecimento,
ideia interior da acção, é realizado em cena por um acrescento de
caracterização feito à vista do público (colocação de cabeleiras) – as
ideias-interiores é que se transpõem para o esquema cénico. Em «O Auto da
Índia», comédia de costumes de Gil Vicente, a porta da casa da Ama é construída
de maneira a facilitar a reprodução dos elementos de acção-exterior, e a
caracterização é feita não para exprimir a ideia-interior, mas para imprimir
veracidade à reprodução /página 4/
exterior da ideia. Há uma dependência oposta: na Tragédia, a ideia (esquema
interior) determina os elementos de cena; na Comédia, estes ajudam a
construir e a explorar a situação (esquema exterior).Novo exemplo: na comédia «Pigmalião» de Bernard
Shaw, a linguagem da florista é reprodução, mero elemento exterior, explorado
momentaneamente por contraste... e por necessidade; não há um determinismo
íntimo ou simbólico que force aquela linguagem. Em «A Casa de Bernarda Alba»
de Garcia Lorca, até os nomes das personagens são simbólicos, porque vão ser
ditos em cena, e são, só por si, possuidores da ideia que está a
desenvolver-se, e não elaboradores ou ajudantes de elaboração da cena em
movimento.Viu-se, por outro lado, que a Tragédia se
realiza, ao contrário da Comédia, até à consumação da acção – de facto, uma
atitude interior, espiritualmente completa, tende para a libertação e, nesse
ponto, consuma-se inexoravelmente em frustração e dor; um momento altamente
interior deixaria de o ser (e a Tragédia acabaria) no momento em que
abdicasse do seu propósito de ascensão. Um momento exterior, que, por
depreciação, pode inclusivamente conter uma raiva momentânea, uma paixão
ridícula ou uma ambição baixa, interrompe-se (e muito bem) com um cair de
pano ou com um ponto final, depois de exploradas as atitudes e as palavras
que o conduziram. Assim chegamos à aparente irredutibilidade dos géneros, e
aparente, porque o Teatro de hoje, por título alheio a esquemas, tem
entretanto cavado nos dois campos (cada vez mais próximos e dolorosos) e,
desta maneira, conseguido realizações de equilíbrio perigoso, só atingido em
plenitude por mãos aguçadas pelo génio.
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A
conjugação dos dois géneros, de molde a produzir um terceiro que não seja o
circo, é tarefa de altas proporções – quando cada papel é expressão e
símbolo simultâneo de uma ridícula frustração individual e de um
desencontro no alto plano sociológico, o diálogo e a realização final
ameaçam tornar-se num labirinto sem solução. Por outro lado, a conjugação
de esquemas e de atitudes pode levar a um resultado de torturante beleza e
poder, como, por exemplo, em «Espera de Godot» de Samuel Beckett: toda a
peça é construída e realizada sobre uma reprodução-em-comédia de uma
ridícula dor individual e, simultaneamente, sobre uma
sublimação-em-Tragédia de um fatal desencontro de sociedades, e o resultado
é um vaso magnífico de forma e de conteúdo ideal. Didi e Gogo aparecem
nas nossas estradas e fazem-nos rir; mas a sociedade onde há «Didis» e
«Gogos» faz-nos chorar. É tudo.
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Alberto Pimenta
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